O Complexo de Cebolinha

Também conhecido como: “Quando as pessoas se acham dono da lua – ou melhor, da rua”

Hoje foi um dia como outro qualquer. Um domingo que tinha tudo para ser tranquilo. Se não fosse, é claro, por uma coisa que chamo de “Complexo de Cebolinha”. Vou explicar. Todos conhecem o personagem Cebolinha, da Turma da Mônica, quadrinhos icônicos do Maurício de Sousa, correto? Todos sabem que este personagem se diz o “dono da lua“, com sua adorada troca de “r” para “l”. O problema todo é que essa síndrome parece ter impregnado em pessoas aleatórias ao redor do mundo. Infelizmente, uma dessas pessoas, mora no meu bairro.

É a única explicação plausível para uma pessoa sair de sua casa antes de oito da manhã com um carro munido de caixas de som até a minha rua, se posicionar bem em frente a minha casa e ligar seu inexistente gosto musical (peraí, eu disse gosto musical? Eu quis dizer desgosto musical!) em último volume. Você tem que se achar muito dono das coisas, inclusive, para achar ruim que as outras pessoas que convivem em sociedade com você, não vão se sentir incomodadas pelo seu complexo de que você é dono da rua inteira, e portanto, pode fazer o que desejar com ela.

Se esta fosse a primeira vez e não me causasse problemas, talvez, eu teria usado o nada para responder à afronta. Mas ser acordada com minha cama tremendo, um som infeliz nos meus ouvidos, e uma dor de cabeça beirando à enxaqueca num domingo de manhã? Vocês vão ter que me dar razão na sequência dos fatos.

Peguei meu telefone, liguei para o órgão responsável por poluição sonora da minha cidade. Denunciei o veículo, com placa e tudo. Uma pequena ligação que se deu assim:

  • Poluição Sonora, bom dia
  • Bom dia, gostaria de denunciar um veículo com som alto
  • O veículo está ligado a político ou carreata? (infelizmente estamos em época de eleição)
  • Não
  • Dê os dados do veículo
  • É uma caminhonete de cor prata, placa XXXXXX
  • Que horas o barulho começou?
  • Por volta das oito horas
  • Essa situação é recorrente?
  • Sim, todos os fins de semana e feriados. Daqui a pouco junta uma aglomeração e se torna festa. Em plena pandemia
  • Estamos enviando uma unidade. Confirme seu endereço.
  • Rua dos Bobos, número 0.
  • Agora é só aguardar, minha senhora. Anote o número de seu protocolo.
  • Com certeza, pode falar.

Recebi uma ligação, alguns minutos depois, de uma unidade se movimentando em direção ao meu bairro para averiguação. Com a chegada, enfim, o silêncio.

Todos se calaram, e passaram a me odiar e a odiar todos que moram comigo. Eu acho que é o preço a se pagar quando precisamos de paz. Não existe nada de graça, afinal de contas.

Mas voltemos a falar do Complexo de Cebolinha, agora que vocês já entenderam toda situação. Não sei se isto tem outro nome na Psicologia. Nunca estudei esta ciência a fundo. Mas se não tiver, acredito que este nome resuma perfeitamente a situação e o tipo de indivíduo que acaba se deixando levar por este complexo. A pessoa passa por mim e automaticamente me olha de cara feia, porque acredita que eu estava errada em reivindicar meus direitos. E eu, o que penso disso? O clássico “cara feia para mim, é fome”. Afinal, antes de meio dia, e já que com toda a certeza, uma pessoa dessa não deve ter tido um café da manhã muito nutritivo, ela só pode estar com fome mesmo. Com muita fome, ou inveja – outro característico do Complexo de Cebolinha, veja bem. O Cebolinha vive correndo atrás do Sansão, o coelhinho da Mônica. Por quê? Porque ela tem uma arma em mãos e ele não. Porque ela é bem decidida, e ele não. Porque ela não tem medo das coisas e nem age como uma indefesa, e… ele não. O “Complexo de Cebolinha” está tão enraizado em nossa sociedade, afinal, a vida imita a arte, não é mesmo? Às vezes sequer percebemos que estamos agindo como dono de algo que não nos pertence nem deveria nos pertencer. O coletivo precisa ser respeitado, e isso quer dizer que ninguém está lhe dizendo que você não pode ouvir sua música, ou dirigir com seu som nas alturas – somente que você deva ter bom senso. Não precisamos de outro Cebolinha, só o da ficção nos basta. Mas perceba que, independente de quantos quilômetros de distância você esteja de mim, ou quantos anos passe até que você leia esse post, você perceberá que sempre haverá algum Cebolinha com o qual não adianta discutir – a única maneira de fazê-lo parar será acionando forças maiores. Porque se você for discutir pessoalmente, ele agirá exatamente como uma criança como o Cebolinha iria agir:

Vai bater o pé e dizer que está certo.

Isso não sou eu lendo o futuro ou fazendo qualquer previsão do tipo, isto sou eu simplesmente colocando os pingos nos is. Na realidade mais profunda e mais complexa que você possa ter, ainda assim, se deparará com pessoas que agem feito criança e que baterão o pé que estão certos sempre. Não há nada ou ninguém que os faça mudar de ideia, e isso lhes traz força – até que eles encontrem alguém que lhes pare – e se você não for uma dessas pessoas insuportáveis, seja a pessoa que para. É importante existir uma em cada esquina, só assim vamos poder fazer desse mundo um mundo melhor. E se você acha que eu estou brincando, só experimente começar pela sua rua. Tome liderança. Não é muito difícil fazer um mundo melhor quando todos estão lutando para isso. Mesmo que isso signifique ter que lutar contra quem não está lutando a favor.

Não há como milagres serem feitos, eles só acontecem se existir mobilização. Aproveite a sua voz para gritar e reivindicar o que é direito seu. As outras pessoas estarão muito ocupadas reivindicando os delas. Ou muito ocupadas sendo marionetes de gente que só quer roubar o seu direito de pensar, falar, agir, sentir, reagir. Ou você começa algo agora, ou amanhã talvez seja tarde demais.

Pense nisso.

 

 

Essa história é parte do desafio do Nanowrimo 2020, e está sob a tag “Aconteceu Comigo”. Os fatos são reais, mas algumas informações foram modificadas para segurança dos envolvidos.
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