Abstrai e finge demencia

Talvez eu choque alguns de vocês com a revelação bombástica de que eu sou cristã, pertenço a uma igreja e já congreguei a dezoito quilômetros da minha casa. Talvez choque vocês mais ainda, saber que sou de uma igreja tradicionalista, conservadora e… sabatista. Pois é. A minha crença guarda o sábado como o dia do descanso de Deus após a criação. Não. O post de hoje não é para evangelizar ninguém. É, para, como esta série se propõe, contar casos que aconteceram comigo. E vocês entenderão logo porque os casos de hoje estão entitulados como “Abstrai e finge demencia”. Sim, os casos. Vou contar dois em um post só, afinal, os dois tem a ver com a minha religião. Na verdade, eu tenho vários outros casos para contar. Mas hoje, se contentem com esses dois.

Primeiro:

O fim de ano se aproximava rapidamente e teríamos aulas até o feriado de Natal e Ano Novo. Neste dia, estávamos num shopping, depois da aula da faculdade, em três, lanchando e conversando amenidades. A decoração natalina já estava posta e todo o shopping respirava aquele verde e vermelho tão comum das festas natalinas. Que fique claro aqui: Eu não acredito que Jesus tenha nascido no dia 25 de dezembro. A Bíblia não nos dá a data exata, mas nos dá indícios suficientes para sabermos que não pode ter sido em dezembro. Além do mais, vocês acreditam que um capricorniano iria tomar os pecados do mundo inteiro e morrer por todos nós? Ok, pararei de graça e continuarei a narrar.

Em um dado momento, por alguma razão, alguém mencionou o natal, e nossa colega, Lila, se revoltou imediatamente, “Vocês acham que esta data não é comercial? Não está na Bíblia! Estão deturpando a palavra de Jeová. Isto é errado, e comemorar isso fará com que vocês sejam aniquilados” (sim, exatamente desta maneira, meus caros…). Eu e minha outra colega, esta da mesma crença que eu, nos entreolhamos, “Bom, não acreditamos que Jesus tenha nascido no dia 25 de dezembro, mas… é uma data em que as pessoas costumam abrir o coração para a bondade e estão mais dispostas a ouvir a palavra da salvação…”

“Mas é preciso evangelizar todos os dias, bater de porta em porta, fazer o trabalho como Jesus fez…”

E bem… Sim, meus amigos, essa nossa amiga continuou falando por pelo menos mais uma hora sobre como estávamos errados em nossa crença e sobre como a igreja dela era a única que salvava porque obedecia TODA A BÍBLIA (apesar dela só guardar nove mandamentos ao invés de dez, não é mesmo? Risos, risos, risos. Não, não venham discutir comigo sobre isso. Eu não estou disposta a convencer vocês, assim como não estava disposta a convencê-la nesta ocasião)

Enfim, esta amiga se despediu de nós e pegou seu ônibus para casa. Jessica e eu nos entreolhamos. “O que foi que acabou de acontecer?”. Perguntei-lhe ainda estupefata da reação de Lila. “É por isso que não converso sobre religião com ela. Ela não consegue ouvir nada que seja divergente da opinião dela. E a opinião dela não concorda muito com o que as outras pessoas dizem sobre alguns assuntos”.

Nessa época eu não entendia, mas Jessica também não me explicou. Conforme eu fui andando mais vezes com Lila e ela, no entanto, as coisas se tornaram mais claras para mim. Lila era Testemunha de Jeová, e, assim como eu sei que existem extremistas em todas as religiões, ela era o tipo de pessoa que defendia a dela com unhas e dentes sem ouvir a opinião de mais ninguém. Sequer ligava para o fato de que cada um pode ter a sua própria opinião, sem que o outro precise necessariamente se converter à fé dela.

Mas aprendi que com certas pessoas é difícil de argumentar e difícil de lidar, também. As outras vezes que conversei com Lila, evitei todo assunto ligado à religião. Não só com ela, mas com boa parte dos colegas que eu tinha que pensavam como Lila. A melhor saída é só realmente abstrair e fingir demencia. Certas coisas não podem ser conversadas, assim como certas coisas são melhores quando não ditas.

 

Segundo:

Estava chegando o momento da solenidade da minha formatura, e nos INTIMARAM a ir em uma reunião na faculdade… num dia de sábado. Lembram que eu comentei que minha religião guarda o sábado? Pois bem. O que isso significa na prática? Sem problemas pessoais resolvidos no dia do Senhor. Com a minha falta e a de Jéssica (que também se formava na mesma época que eu), a faculdade emitiu um comunicado dizendo que se alguém trabalhasse ou tivesse outra ocupação, que faltasse a suas ocupações em dia de sábado para participar das reuniões, que atestados seriam emitidos. Nossa reação foi imediata.

“Como mandar um atestado para Deus?”

“Alguém tem o endereço do céu?”

Levamos nossas cartas da igreja, provando que todas as atividades realizadas entre o pôr do sol de sexta-feira e o pôr do sol de sábado devem ser atividades compatíveis com a nossa fé – neste caso, atividades de honra ao Criador e de descanso para nós. Veja bem que, quando dizemos descansar, não nos referimos a dormir o dia inteiro. Em realidade, sábado provavelmente é o dia em que mais trabalhamos (parece contraditório?). É o dia em que vamos a igreja (e nesta época eu congregava NUMA IGREJA QUE FICAVA A DEZOITO QUILÔMETROS DA MINHA CASA), é o dia em que fazemos visitas, evangelizamos, e nos deleitamos nas criações de Deus.

Éramos as únicas a não participar das reuniões de formatura e ousaram nos dizer que não poderíamos formar por causa disso – sendo que estivemos presentes em todos os outros momentos, e inclusive pagamos como todo mundo, tudo o que tínhamos que pagar para nos formar com solenidade.

Reclamamos com os funcionários da universidade e então a última reunião não foi marcada para um sábado. Bem, se as pessoas podem levar atestados para seus trabalhos nos sábados, elas podem levar para outros dias também. Não podemos entregar um atestado a Deus, muito menos desobedecer Sua palavra por causa de homens. Todos, é claro, nos olharam de olhos retorcidos. Mas o que podemos fazer, além de abstrair e fingir demencia?

O que estou tentando dizer é que às vezes é necessário ignorar os outros para viver bem consigo e com suas próprias convicções. Não podemos viver em função do outro, mas não podemos ignorar o que também é direito nosso. As caras feias e os olhos retorcidos vem, mas é só abstrair. Cara feia? É fome. Ofereça um biscoito. Rolou os olhos para você? Finja demencia e nem ligue. A vida é muito curta para se importar com coisas que não te colocam pra cima. A vida é muito curta para se preocupar com quem não se preocupa com você. Jesus disse “Ame o Senhor, o teu Deus, de todo o teu coração, de toda tua alma, de todo o teu entedimento e de todas as tuas forças (…) Ame o teu próximo como a ti mesmo” (Marcos 12:30-31). Não há como amar a alguém, se você não se ama. E como você pretende se amar se não se coloca em primeiro lugar em suas convicções ou qualquer coisa abala sua fé? Só existe uma maneira de cumprir o mandamento por completo, e esta maneira é amando aos outros da mesma forma que você se ama, que você cuida de você, que você se respeita. Se você não consegue fazer nada disso por você, nunca irá fazer pelo outro. É impossível criar empatia sem amor. É impossível criar laços sem amor. É impossível se preocupar, sem amor. É impossível cuidar, sem se preocupar, e desta maneira, também é impossível cuidar sem amor. Tudo que nós podemos fazer quando estas coisas acontecem, é nos afastar. Precisamos dar valor a quem nos dá valor. Precisamos cuidar de quem cuida da gente. Precisamos estar com quem está com a gente. É necessário separar o supérfluo do necessário. Só gaste suas forças com quem está contigo para te apoiar mesmo quando suas forças acabarem. Fora isso? Abstrai… e finge demencia.

 

Essa história é parte do desafio do Nanowrimo 2020, e está sob a tag “Aconteceu Comigo”. Os fatos são reais, mas algumas informações foram modificadas para segurança dos envolvidos.
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